Hoje decidi partilhar convosco o início do meu devaneio literário, a que dei o nome de "Mapa de autoestrada". Eis como tudo começou....

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Fonte / Source -> Author's photo, captured by my phone
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Verifico, de relance, que nada é psicologicamente ingénuo neste lugar onde é suposto abrir-se a torrente da espontaneidade irrestrita, já que tudo aqui denota um propósito inerte, desde a decoração asséptica até às revistas cuidadosamente repartidas em duas pequenas pilhas: as enfadonhas com artigos da especialidade médica ou sobre empresas e economia, e as superficiais, prontas a esbofetear o miserável sequioso de encontrar o seu lugar no mundo, com a vida de sonho do jetset ibérico sábiamente salpicada de excitantes mergulhos na sua mundana desgraça. 
O Relógio da recepção marcava uma hora de espera, mais meia duma dúvida angustiante acerca da real utilidade do que estou prestes a fazer, pois confesso que só cheguei aqui empurrada e encurralada por repetidos conselhos e caridosos incentivos, que invariavelmente acabavam em: 
-“ahh, tenho tanto orgulho em ti, vê só como te aguentas. És tão corajosa…” Quando na verdade só tem coragem quem morre de medo e todos os dias desabo só por sair da cama e me sinto uma merda. Uma grande merda sem fim à vista nem vista para os lados.
É só uma sala de espera impregnada daquele cheiro mole a espaço hermético e saturado de histórias pesadas, mas esta vem travestida de profissional pretensão a nos abrigar do mundo e da entropia da vida. 
Deixei-me imbuir daquele cheiro e imaginei-o num spot televisivo, entre o telejornal e a novela da noite, incarnado por uma diva indolente em roupão de seda, de cigarro esquecido nos dedos finos e cabeça levemente descaída pelo insustentável glamour dum olhar vazio a combinar com uns lábios entreabertos, de prometedor carmim… 
-Ato contínuo, imagética declamada em voz grave e lenta: 


“Zero Emotion”

~ Eau de parfum~ 

By  Creator


(sim, porque para vender bem tem de parecer sofisticado, logo, tem MESMO que se apresentar em inglês)
Disponível em qualquer consultório perto de si…


O zumbido do aparelho de ar condicionado, que arranca em surdina, desperta-me da fantasia que já derrapava para o panegírico dum qualquer detergente de loiça e tem o condão de recentrar a minha atenção nesta antecâmara desoladora que eu assumi dar-me acesso direto à revelação das verdades universais (aquelas que curam todos os males e conseguem devolver-nos a paz interior que nunca ninguém sabe bem onde ou como perdeu).
Aí dou conta de me resumir a mais uma alma isolada e perdida dum rebanho que circula intermitente por milhares de salas iguais a esta. E de que arrastei até aqui a secreta esperança de que ao contar a minha fenomenal história individual de 18250 noites e uma caverna cheia de entulho em lugar de ouro e joias, conseguirei sair deste buraco medonho e sufocante em que paralisei no último ano como Ser semiexistente.
Mas tenho boas razões para isso – sublinho-me de convencimento a cada vez que recrimino estes meus estados de alma - e instintivamente empertigo-me na cadeira, embora não haja rigorosamente ninguém na sala para testemunhar o meu rasgo de determinação. 
Nem de propósito, ou talvez para corroborar o acerto destas cogitações, emerge do corredor a senhora de expressão informe, que nem sequer levantou o olhar do teclado à minha chegada, a flautar o proverbial: 
- “faça favor de me acompanhar, o sôtor vai recebê-la agora” - que é para o que lhe pagam.
 E foi aí que o pânico me atingiu no estômago, juntamente com o ímpeto de correr dali para fora, a tempo de deixar em reserva este último recurso a que deitar mão depois de mais uma qualquer tentativa fracassada, que mostrasse que apesar de tudo eu não desisti de mim. 
Mas desta vez o olhar dela estava todo na minha cara e não me deixaria ir sem luta, por isso - e porque já tinha chegado até ali - lá levantei todo o peso da minha epopeia pessoal e mais o de arriscar pôr-me nas mão de alguém com enormes e certificadas capacidades para me causar danos irreversíveis, e entrei na consulta.
Hora e meia mais tarde saía dividida entre o alívio, a esperança e um coro de dúvidas desafinadas a dançar à volta das palavras finais do psiquiatra: - “chegámos a conclusões importantes, que são sementes que ficam agora na sua cabeça. Nos próximos dias fique atenta ao que vai brotar delas e voltaremos a falar daqui a dois meses. Entretanto, procure o colega que lhe indiquei e diga que vai da minha parte”.
Mas disso falarei depois. Para já a única coisa que consegue fazer-me sentido é sair esta noite e beber o suficiente para adormecer a mente das demasiadas coisas com que fui confrontada. 


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